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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Evo e as comunidades indígenas

Há uma história ancestral no mundo andino que a ascensão de Evo Morales parece ter projetado novamente para a luz. O mundo andino foi marcado pela sobrevivência ao longo de séculos de resistência das comunidades indígenas aymarás e qhéchuas entre outras, que sobreviveram à colonização espanhola e aos anos conturbados que se seguiram as independências no século XIX. O genial e precoce pensador peruano José Carlos Mariátegui já havia notado uma profunda sociedade indígena remanescente e entranhada na própria terra, um elo de ligação entre a solidariedade comunitária e um futuro libertário para a América Latina com que sonhava.
Na Bolívia nem sempre este laço de solidariedade previsto por Marátegui entre os de baixo foi claro. Mesmo os proletários mineiros que se enfrentaram nas décadas de 1940 e 1950 com os mineradores sob as bandeiras socialistas pouca atenção deram ao mundo indígena. Uma fragilidade que a História não deixou de cobrar seu preço. A revolução de 1952 e sua quase esquecida e pálida reforma agrária buscou, sob a liderança dos nacionalistas reformistas desestruturar as comunidades indígenas em nome da cidadania liberal, da propriedade individual e da liberdade. Isso cravou novas feridas na sociedade boliviana, ainda mal curadas. O sociólogo boliviano René Zavaleta Mercado chegou a forjar o conceito de “sociedade abigarrada” para tentar entender uma nação junta mas não unida, em que conviviam em um mesmo quadro social setores sociais quase que incomunicáveis. Isso está mudando?
Durante os anos 1970, em que vigorava uma ditadura militar no poder desde 1964, um vigoroso movimento indigenista buscou reconstruir, ou trazer para superfície, uma Bolívia silenciada ou apartada. Era o movimento katarista, que em sua face mais radical beirou o fanatismo racista dos índios contra os brancos. Esse movimento indigenista crescia na esteira do silenciamento do combativo movimento operário pelos militares. De fato, parecia haver um constante ressurgir histórico do mundo andino ancestral, dos laços sociais e econômicas das comunidades indígenas, marcados pela quase impermeabilidade da modernidade ocidental, expressando muitas vezes quase um mundo a parte, ou uma história vivida em outro ritmo paralelo, em outra camada da história silenciosa. Em momentos de grande tensão social e econômica esses tempos históricos vividos em outro ritmo, essas camadas mais profundas da sociedade parecem se reencontrar para buscar acertar seus ritmos, como se uma história caudalosa e profunda se tornasse repentinamente visível à superfície como protagonista das conjunturas e dos eventos mais corriqueiros. Evo Morales certamente unificou, ou expressou, um movimento social profundo e unificado de defesa da soberania e autodeterminação da nação boliviana como nunca houve no país. Estamos vivendo um novo ressurgir, um reencontro da nação boliviana?
A tão celebrada Nova Constituição Política do Estado Boliviano, aprovada em janeiro de 2009, foi exaustivamente negociada com os setores que defenderam abertamente o separatismo do país. Foi celebrada a formulação de um Estado plurinacional, intercultural, descentralizado e com autonomias regionais. Porém, essa suposta conquista do estado plurinacional, longe de ser um cosmético, pode fortalecer o regionalismo e a fragmentação social dos setores populares e do tradicional e combativo movimento operário do país. E, dessa forma, favorece a antiga Bolívia dividida e submissa à ingerência externa, aquela que sempre foi obstáculo no caminho que levou Evo Morales ao poder. O choque entre etnias e grupos da própria base social de Evo é também parte da dinâmica em desenvolvimento de fragmentação étnica, regionalista e autonomista que ameaça destruir a grande conquista política do seu governo, a unidade politica em torno da soberania nacional traduzida nas ações contrárias ao separatismo regional.
O mundo das comunidades indígenas só tem sentido e vigor, ganhando uma dimensão política maior na arena de uma nação boliviana plenamente soberana e independente. A fragmentação enfraquece as próprias comunidades. O regionalismo e o autonomismo, expressos recentemente nos choques relacionados à construção da estrada para ligar os departamento de Pando e Cochabamba, mostram uma dinâmica preocupante se prevalecer uma perspectiva política isolacionista e não nacional. A posição do governo Evo de dialogar e negociar com as comunidades indígenas da região é positiva, mas está longe de resolver as questões. As cicatrizes que separaram e contiveram a Bolívia durante séculos ainda estão abertas.